Como ficam os contratos cíveis e de consumo durante a Pandemia?

O regime jurídico das relações privadas no âmbito da Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020.
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Contratos cíveis durante a Pandemia

Já é lugar comum dizer que a pandemia de Covid-19, assim como as medidas de isolamento social, impactarão, e muito, a nossa vida como sociedade, desde hábitos de higiene à comportamento consumerista. Se é verdade, ou não, que haverá reformulação de nosso modo de vida, só se saberá com o tempo, o que não se pode negar, contudo, são os já evidentes impactos da pandemia e seus consectários no âmbito dos contratos e relações privadas.

Contratos cíveis durante a Pandemia

Do ponto de vista da forma de consumo, não é difícil constatar o crescimento do comércio eletrônico até mesmo em decorrência do fechamento de lojas e estabelecimentos físicos durante o estabelecimento de “quarentena” e “lockdown”. No sítio eletrônico da E-Commerce Brasil, por exemplo, várias são as matérias que tratam da expansão do mercado eletrônico brasileiro diante da pandemia, em uma delas lê-se a seguinte manchete: “Com pandemia, e-commerce cresce 81% em abril e fatura R$ 9,4 bilhões” (Clique aqui e veja a matéria).

No direito, assim como outras mudanças em nosso estilo de vida, esse aumento do mercado digital ainda gerará muitos estudos e debates. De fato, as questões de direito e tecnologia ainda são relativamente novas, e promete-se que centralizarão os debates jurídicos por vir. No entanto, e talvez o que é mais interessante para os juristas e população em geral, é saber como ficam as relações jurídicas pré-existentes e que sofreram os impactos da pandemia?

Pandemia, contratos e situação de excepcionalidade

Ora, a pandemia e as medidas de isolamento social são claras excepcionalidades, diante de um contexto de relações jurídicas celebradas em uma “normalidade sanitária”. Por ser uma excepcionalidade que atinge potencialmente a todos, inúmeros são os impactos nas relações privadas.

De um modo geral, são duas as possibilidades mais relevantes a serem analisadas: a) impossibilidade de cumprimento do contrato como, por exemplo, a contratação de um cerimonial ou buffet para data abarcada pelas medidas de isolamento, onde proíbe-se as aglomerações de pessoas; b) incerteza quanto à possibilidade de cumprimento, como no caso de passagem aérea futura para locais em que há restrições sanitárias em relação a entrada de turistas ou mesmo o fechamento completo de fronteiras. Ambas as hipóteses são discutidas pelo professor Bruno Miragem, que ainda acrescenta uma terceira, qual seja, o caso em que há incertezas em relação às expectativas legítimas de cumprimento. (Clique aqui e veja o artigo).

É de conhecimento comum que a celebração de um contrato importa na assunção, pelas partes, de certas prestações ou comportamentos. Diz-se, então, que o contrato é lei entre as partes (pacta sunt servanda), mas, e isso é evidente, o acordo de vontades e o conteúdo prestacional não são os únicos elementos a serem estudados na disciplina contratual, dentro do Direito Privado.

Sem descer às minúcias próprias de uma voltada exclusivamente à juristas e estudantes de direito, cumpre-nos lembrar que também a teoria da imprevisão é imprescindível, ou seja, a modificação das circunstâncias fáticas que levaram à contratação, caso acarrete em desequilíbrio, justifica o afastamento temporário da obrigatoriedade do contrato, podendo levar à uma revisão ou mesmo resolução contratuais.

Se há, então, impossibilidade de cumprimento do contrato em decorrência das medidas sanitárias de isolamento social ou em razão de tomada de medidas de precaução para evitar a proliferação do vírus, o que deve ser analisado é se há ou não possibilidade da obrigação contratada ser prestada em outro momento. Isto é, se há uma impossibilidade tão somente temporária, de modo que é possível cumprir com o acordado em momento posterior sem maiores prejuízos, deve-se preservar a relação jurídica.

Contudo, caso a impossibilidade seja definitiva, a questão enquadra-se em inadimplemento decorrente de força maior, o que quebra o nexo de causalidade entre a falta da prestação e o dano decorrente para o contratante. Conforme se verifica do art. 393, parágrafo único, do Código Civil (CC), caracterizada a força maior, exonera-se o devedor de responsabilidade e resolve-se o contrato com a restituição das partes ao status quo ante, ou seja, ao estado em que se encontravam anteriormente ao negócio jurídico, o que implica, como sugere a expressão do “retorno”, a devolução de eventuais valores pagos.

Se a situação sugere uma incerteza quanto à possibilidade de cumprimento futuro, a excepcionalidade da pandemia também deve possibilitar a aplicação da teoria da imprevisão, brevemente abordada acima, para que se possa empreender a renegociação dos contratos (art. 317 do CC) ou, caso a mudança de circunstâncias gere onerosidade excessiva, a resolução do mesmo, nos termos do art. 478 e ss., do CC. Observe:

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.

Fora desses casos relativos à imprevisibilidade dos efeitos da pandemia, a recente Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, regulou algumas situações pontuais no âmbito do Direito Privado como um todo, que merecem destaque.

Efeitos da lei nº 14.010/2020 na disciplina contratual

No intuito de buscar regular alguns dos impactos da pandemia e das medidas de isolamento social, editou-se a Lei nº 14.010/2020, que já em seu art. 1º, §1º, estabelece o marco temporal inicial, para efeitos do chamado “Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET)”, como sendo o dia 20/03/2020. Com isso já se evita a discussão sobre os efeitos diferentes para cada Estado da Federação, uma vez que cada um iniciou as medidas de isolamento e uma data diversa, de acordo com suas necessidades locais.

Fora a questão de marco temporal, dois são os tópicos de interesse na legislação, concernentes aos contratos de modo geral. O primeiro tópico, diz respeito à prescrição e decadência, já o segundo é relativo à contratos de consumo, especificamente, de delivery.

Sobre a prescrição, dispõe o art. 3º: “Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020”. Esse dispositivo evita que credores sejam prejudicados de cobrar seus direitos em decorrência da impossibilidade de tomar as providências devidas, durante as medidas de isolamento social. Com isso busca-se garantir o mínimo de estabilidade para que as pessoas não percam a possibilidade de exigir seus direitos, inclusive na via judicial.

O mesmo preceito é aplicado às situações abarcadas por prazos decadenciais, que em regra não se suspendem ou interrompem, de modo que o art. 3º, §2º, da Lei 14.010/2020, excetua de forma expressa o art. 207 do CC.

Outrossim, a despeito da relevância dos temas tratados anteriormente, dado o contexto de crescimento do comércio eletrônico, fora dos estabelecimentos comerciais, a disposição mais relevante da Lei nº 14.010/2020 é relativa ao delivery. Ora, a regra geral do Código de Defesa do Consumidor (CDC) é que:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

Em outras palavras, de modo geral, em qualquer compra fora do estabelecimento comercial do fornecedor, o consumidor tem a prerrogativa de cancelar a compra, a seu bel prazer. Contudo, imaginando que essa regra poderia acarretar em uma sobrecarga ainda maior aos serviços de entrega domiciliar, estabeleceu-se, no art. 8º, da Lei nº 14.010/2020, a suspensão de aplicação do art. 49 do CDC, até a data de 20/10/2020, relativamente às entregas de produtos perecíveis, de consumo imediato ou medicamentos.

Bem, a suspensão, ainda que temporária, de um direito do consumidor é por si só complicada, e, por bem ou por mal, as intenções do legislador não são e não podem ser objetos de discussão jurídica.

Caso o leitor esteja passando por um problema contratual decorrente da pandemia, não hesite, entre em contato com seu advogado de confiança.